Sol com gosto de limão
O outono chegou tímido, fez como se não fosse em março que ele tinha que vir.
De repente, lá para começo de maio, se deu conta de seu papel no universo, trouxe ventos frios e sol morno.
Ele olhou pela janela, era ainda muito cedo para
levantar. Voltou para cama, agarrou o edredom e tentou mais um sono.
Não era o que ele queria, mas ele nem tinha idéia do
que poderia ser. Dormir, levantar, trabalhar, comer. Tudo era tão automático,
não havia surpresas ou alegrias. A tristeza era permanente.
Alguém lhe disse, um dia: "você tem que amar o que
você estiver fazendo, senão não há propósito na vida." Apesar de achar o
próprio comentário sem propósito, ele nunca o tirou da cabeça, e não conseguia
lembrar quem tinha feito esse comentário.
A vida desse homem seguia seu rumo, torto, até que
nesse dia, ao voltar para a cama ele sonhou. Um ou vários sonhos juntos, todos
estranhos. Ele se via andando em um campo aberto, correndo, estava muito
cansado. O lugar era bonito, mas ele se sentia muito mal. Do que ele corria? Se
viu próximo a um poço e sentado na beira deste, uma moça linda, de cabelos
prateados e longa túnica branca. Quem era ela? Ele nada disse, mas sabia que
deveria pegar a chave com esta moça. Ele esperava por uma chave grande,
trabalhada, mas recebeu uma pequena chave, fina, descascada, com apenas um
dente no segredo. Voltou a correr, exausto, com dor nos pés. Chegou até uma
cabana, janela caindo, telhado faltando telhas, e uma porta de madeira maciça,
com desenhos em relevo. Levou a chave até a fechadura e riu do contraste do
lugar. Sem perceber já estava dentro daquela, daquele... palácio. Nele
encontrou seu pai. Meu Deus, meu pai? Há quanto tempo não o vejo, desde aquela
briga; ele está vivo? Olhou dentro de seus olhos e num salto, acordou.
Suado, com uma verdadeira dor nos pés, os pensamentos
embaralhados. Onde esteve? Foi tudo tão real. Que lugar era aquele?
Desde esse dia, descobriu-se interessado. Não pela
vida, nessa ele não pensava. Mas teve um motivo para acordar todas as manhãs:
descobrir o significado daquele sonho. Embora descrente, como ele se descrevia,
aquele sonho mexeu com ele e juntou as pontas com aquele comentário que ouvira
um dia, sobre amar o que estiver fazendo.
Dia após dia, tentava resolver uma parte do sonho.
Claro que era coisa só dele, não contou à ninguém. Mas foi ao médico e percebeu
que a dor que ele sentiu no pé aquele dia não era sonho, a sentia todos os dias
e sequer dava atenção a ela. Resultado: Inflamação
da fáscia plantar. Tratamento: antiinflamatório.
Procurou por seu pai, não desesperadamente, tinha medo.
Buscou na internet, pelo nome, algo que pudesse lhe dar uma dica por onde
começar. Desde que ele saíra de casa, nunca mais voltara; soube por um tio, que
o pai havia mudado de cidade, até ouviu o nome do lugar, mas não escutou, não
queria saber. E nada encontrou na tela do computador.
E a moça, quem era? Parecia um ser superior. Ah! Ele
deve ter misturado o sonho com o filme que assistira. No filme também tinha
dragões e ele não sonhara com dragões. Quem era então? Passou a perceber todas
as moças altas, magras, com cabelos muito compridos. Fazer tudo com amor. O que
ele tinha a perder?
Decidido, largou o emprego. Chegou ao escritório, no
mesmo horário, falou bom dia, ninguém respondeu. Pegou suas poucas coisas,
deixou uma carta manuscrita na mesa do chefe, com seu telefone para que
avisassem quando deveria voltar para assinar os papéis. Não falou tchau, todos
o olharam, cochicharam, e ele se foi. Quando chegou à rua, sentiu o outono no
rosto. Há quanto tempo não tinha essa sensação. Liberdade? Prazer?
Estava subindo no ônibus quando alguém gritou seu nome,
olhou, pensou ser alguém do escritório, talvez ele tivesse esquecido algo. Não
reconheceu aquele rosto. O motorista já estava gritando: “vai subir ou o quê?
Sou seu chofer?”.
Ele desceu o único pé que estava no degrau do ônibus e
tentou reconhecer aquela face. A mulher se aproximou e com um sorriso disse: “Nossa,
pensei que nunca mais o veria. Você continua igualzinho”.
Aquela mulher, alta, com uma trança dobrada e aquela
bata. Ele congelou e perguntou: “Quem é você”.
“Ora, não acredito. Como não lembra de mim? A gente
cresceu junto. Você não mudou nada”.
Elvira. “Elvira, é?”
“Sim, seu bobo! Tanta gente tentou contato com você.
Seu pai...”.
“O que tem meu pai?”.
“Não soube?”
“Me diga, o que tem meu pai?”
“Ele se mudou. Isso você sabe, né? Na cidade nova
conheceu uma mulher, ricaça, dizem que se amaram pra valer. Ela morreu e deixou
tudo para ele.”
“O palácio.”
“Ai, meu Deus, você anda fazendo coisa errada. Não tem
palácio nenhum. Embora rica, ela era simples. Ele preferiu não gastar o
dinheiro e continua morando na mesma casa. Vamos sentar e tomar um café?
Preciso saber o que você anda fazendo, tá muito estranho”.
Ele concordou com a cabeça e a seguiu. Tudo rodava.
Tudo fazia sentido. Nada fazia sentido. Ele não acreditava em nada, mas
acreditou no sonho e o seguiu, ou melhor, foi seguido.
Sentaram em um sofá para dois no fundo do café. Ela
pediu capuccino para os dois. E conversaram, esqueceram da hora. Ele perguntou
tudo o que queria saber, até mesmo desde quando ela era alta! Ele se lembrou
daquela garotinha pequena, bem menor do que ele, que sempre estava respondendo
em seu lugar e tomando a dianteira nas brincadeiras, até futebol ela jogava. E
foi isso, ela continua jogando bola, vôlei, profissionalmente. Daí cresceu, e
muito.
E seu pai? Era o que mais o interessava. Anotou o nome
da cidade, embora agora ele não fosse esquecer. E afirmou: iria visitá-lo no
fim de semana.
Ela, que ainda morava naquela pequena cidade do
interior, o questionou: “cheguei antes de ontem, para procurar um patrocinador,
mas não consigo marcar a reunião. Não tenho dinheiro para mais uma noite de
hotel. Eh, poderia ficar na sua casa?”
O que dizer? Se vira, quem mandou não ser controlada?
Ele nem conhecia a mulher Elvira. “Claro, pode ficar, mas... você vai ter que
dormir no sofá.”
E assim eles passaram a quinta, a sexta e o começo de
sábado. Pegaram o ônibus até a cidade de Elvira. As ruas mudaram muito, havia
agora muito comércio. A rodoviária, antes apenas um ponto no trevo da cidade,
se transformara em um lugar gigante, com lojas e lanchonetes. Elvira beijou seu
rosto e lhe agradeceu a estadia, pedindo a ele que prometesse voltar para
ficar na casa dela, queria pagar o feito. E de lá, ele seguiu viagem sozinho.
A estrada era plana e ele podia ver o horizonte, o sol
se punha. Pegou seu casaco, jogou em cima de seu corpo e ficou olhando o
caminho. Um lindo pasto verde, com algumas vaquinhas, logo adiante uma
plantação de eucaliptos e um pouco mais para frente uma plantação de girassóis.
Percebeu que não fora o sonho que o levara a procurar
por um propósito, ele tinha que agir, e o sonho apenas o mostrou seus
pensamentos inconscientes e insistentes. Agora, tudo se encaixava. A liberdade
de um campo aberto; ser consciente da saúde de seu corpo; a confiança na pessoa
forte que Elvira sempre fora; a chave de seu destino; e seu pai, seu sangue,
sua família.
Ansiava por encontrar a tão desprezada felicidade. Pensara que nunca precisaria dela; acreditava que vivia bem com sua infelicidade. Quanta vida vivida à toa. Começara sua busca e o campo verde o seguia até o pote de ouro no final do arco-íris.
Num estalo lembrou que era sua mãe a autora da frase
que sempre esteve com ele: “ você tem que amar o que você estiver fazendo,
senão não há propósito na vida. “
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